7 de abril de 2015

Aquela outra criatura que vejo no espelho

   Era uma tarde dessas que eu chego em casa e logo entro no meu quarto com a cabeça pesada, virada para baixo.
   Sento na cadeira em frente ao meu armazenamento de descarga de sentimentos pro papel - onde a madeira que o sustenta tem absorvido cada lágrima de risada, pois as tristes evaporam com o tempo.  Me olho no espelho do armário, volto a cabeça para algum ponto fixo qualquer que acho em minha escrivaninha. Em um milésimo de segundo meus olhos são, quase que involuntariamente, virados para o meu reflexo.
   A cabeça segue na mesma direção e por fim o corpo gira sobre as rodas da cadeira até que fico de frente à segunda personagem.
   Conto os defeitos que encontro todos os dias, só aqueles que me incomodam, verifico se não tem algum faltando. Se falta, é uma coisa boa. Significa que estou de bom humor e me vejo menos parecida com o que realmente sou, fico feliz. Mas em dias mais sem graça como estes, não enxergo as qualidades.
   Desamarro meus pés do torturante calçado e enrolo minhas meias uma na outra. Piso em um grande bloco de gelo que cobre meu quarto, e com o tempo meus pés se acostumam com o frio.
   A distância entre a cadeira e a minha outra figura é muito distante, quero estar perto e sentir cada detalhe. Ou não. Só pra me sentir mais amigável com aquela criatura. Sento de pernas cruzadas no chão, sempre com a perna esquerda mais em cima da direita. Parada ali por um tempo, me assusto de tanto olhar a mim mesma, me torno irreconhecível aos próprios olhos.
 Engraçado, não sei explicar....
   Igual quando a gente pensa, pensa, pensa, repete, repete e repete mentalmente a mesma palavra por muito tempo e ela acaba ficando sem sentido. 
   Consigo me ver por fora, como estivesse congelado meu corpo e minha alma não mais estivesse presa nele, sem poder movimentar ou toca-lo. Por um tempo parece que está acontecendo de verdade, posso sentir a facada dura e real de saudade de ser aquele "eu". Então me lembro que é só uma sensação ruim. Assim mesmo tenho medo de não conseguir voltar, e uma alma perdida tomar posse da vida que era minha, destrui-la e magoar muita gente ao meu redor. Tomo um suspiro antes de esconder-me novamente em meu corpo, afinal, quem quer voltar da escuridão de onde saiu? Onde guardo os rancores e as dores que tentam gritar através das lágrimas. 
   Um ar limpo banha meu rosto como um carinho de mãe, e acabo a retornar ao meu corpo, minha forma, meu eu.
  Vejo no espelho meu lado intocável, a parte que é escondida mas não deixa de ser minha, estava ali e me olhava com sutileza. Sei que é só meu lado mais fragil e mais tímido, que se contraria, tropeça, chora e ri de tudo o tempo todo, o que precisa de mais cuidado e deve ser enrolado com muitas camadas de plastico bolha.  O lado sensível que deve ser protegido das minhas manias, das minhas loucurinhas e da constante e controladora baixa auto-estima.

Um comentário:

  1. Leticia,
    Sabe, eu fiquei pensando, fazendo um grande esforço para pensar quais são esses defeitos todos que você procura e encontra ao se ver no espelho... Mesmo me esforçando para valer não consegui pensar em nenhum que realmente valesse uma contagem. Nem unzinho. E fiquei pensando que o seu chão também não deve ser tão frio, e que pena que o mundo às vezes fica tão pesado... Gosto de você peixinha, nadando entre as palavras e as amizades, procurando as imagens, se divertindo seja no aquário, seja no rio, seja no mar.
    Não há como você se ver com os meus olhos. Que pena... vc ia se afogar de tão linda que você é.
    Lê, a briga é sempre para que a gente ganhe da gente mesmo, do nosso lado controlador e ultra exigente, que só faz atrapalhar. É uma boa briga. e escrever ajuda! E muito!
    Um beijo grande
    Luana.

    ResponderExcluir